domingo, 3 de agosto de 2008

O caso do espelho
(Ricardo Azevedo)

Era um homem que não sabia quase nada. Morava longe, numa casinha de sapé esquecida nos cafundós da mata. Um dia, precisando ir à cidade, passou em frente a uma loja e viu um espelho pendurado do lado de fora. O homem abriu a boca. Apertou os olhos. Depois gritou, com o espelho nas mãos: - Mas o que é que o retrato de meu pai está fazendo aqui?- Isso é um espelho - explicou o dono da loja.- Não sei se é espelho ou se não é, só sei que é o retrato do meu pai. Os olhos do homem ficaram molhados.- O senhor... conheceu meu pai? - perguntou ele ao comerciante. O dono da loja sorriu. Explicou de novo. Aquilo era só um espelho comum, desses de vidro e moldura de madeira.- É não! - respondeu o outro. - Isso é o retrato do meu pai. É ele sim! Olha o rosto dele. Olha a testa. E o cabelo? E o nariz? E aquele sorriso meio sem jeito? O homem quis saber o preço. O comerciante sacudiu os ombros e vendeu o espelho, baratinho. Naquele dia, o homem que não sabia quase nada entrou em casa todo contente. Guardou, cuidadoso, o espelho embrulhado na gaveta da penteadeira. A mulher ficou só olhando. No outro dia, esperou o marido sair para trabalhar e correu para o quarto. Abrindo a gaveta da penteadeira, desembrulhou o espelho, olhou e deu um passo atrás. Fez o sinal da cruz tapando a boca com as mãos. Em seguida, guardou o espelho na gaveta e saiu chorando.- Ah, meu Deus! — gritava ela desnorteada. - É o retrato de outra mulher! Meu marido não gosta mais de mim! A outra é linda demais! Que olhos bonitos! Que cabeleira solta! Que pele macia! A diaba é mil vezes mais bonita e mais moça do que eu!- Quando o homem voltou, no fim do dia, achou a casa toda desarrumada. A mulher, chorando sentada no chão, não tinha feito nem a comida.- Que foi isso, mulher?- Ah, seu traidor de uma figa! Quem é aquela jararaca lá no retrato?- Que retrato? - perguntou o marido, surpreso.- Aquele mesmo que você escondeu na gaveta da penteadeira!O homem não estava entendendo nada.- Mas aquilo é o retrato do meu pai!Indignada, a mulher colocou as mãos no peito: - Cachorro sem-vergonha, miserável! Pensa que eu não sei a diferença entre um velho lazarento e uma jabiraca safada e horrorosa? A discussão fervia feito água na chaleira. - Velho lazarento coisa nenhuma! - gritou o homem, ofendido.A mãe da moça morava perto, escutou a gritaria e veio ver o que estava acontecendo. Encontrou a filha chorando feito criança que se perdeu e não consegue mais voltar pra casa. - Que é isso, menina?- Aquele cafajeste arranjou outra!- Ela ficou maluca - berrou o homem, de cara amarrada.- Ontem eu vi ele escondendo um pacote na gaveta lá do quarto, mãe! Hoje, depois que ele saiu, fui ver o que era. Tá lá! É o retrato de outra mulher!A boa senhora resolveu, ela mesma, verificar o tal retrato. Entrando no quarto, abriu a gaveta, desembrulhou o pacote e espiou. Arregalou os olhos. Olhou de novo. Soltou uma sonora gargalhada.- Só se for o retrato da bisavó dele! A tal fulana é a coisa mais enrugada, feia, velha, cacarenta, murcha, arruinada, desengonçada, capenga, careca, caduca, torta e desdentada que eu já vi até hoje!E completou, feliz, abraçando a filha: - Fica tranqüila. A bruaca do retrato já está com os dois pés na cova!

(Versão de conto popular de origem chinesa)

Fonte: revista Nova Escola (maio de 1999)

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